Hoje de tarde eu morri

Hoje de tarde eu morri.
Morri voltando do trabalho, com um tiro de bala perdida que inacreditavelmente atingiu minha cabeça.
Morri antes de abrir o presente que ganhei pela manhã, agora nunca saberei o que é.
Morri no dia em que estava ajudando a organizar uma surpresa para alguém querido.
Morri sem terminar um texto importante para o jornal e sem revelar as fotos que tirei no último mês.
É estranho pensar que a minha vida foi interrompida assim, tão de repente.
Ainda não terminei o livro que parecia estar mudando a minha alma, nem tirei o filme da câmera e esqueci de pagar a conta de internet.
Morri uma semana antes de um encontro que na verdade eu nem estava querendo ir.
Morri sem me declarar para a pessoa que eu esperava passar a minha vida, e ele nem sabia.
Morri sem nem comprar os ovos que minha mãe pediu que eu trouxesse quando voltasse para casa.
É estranho pensar que fiquei tão preocupada em não estar vivendo e não estar fazendo nada extraordinário, mas morri deixando coisas simples pela metade, e agora que me foi tirada a vida, parecem importantes e sei que vão precisar que outras pessoas finalizem o que deixei inacabado. Agora que já não vivo mais, sinto falta.
Sempre tive uma sensação esquisita de que morreria jovem, mas ignorei acreditando ser uma bobeira minha, aquela sensação de urgência quando a vida está monótona.
Então eu morri sem fazer um testamento, dizer que queria ser doadora de órgãos ou deixar alguém ciente do que eu queria que fizessem com as minhas coisas.
Mas espero que meus amigos lembrem de revelar as fotos que eu tirei das pessoas que amo e entreguem a elas, espero que minha irmã compre os ovos e pegue a minha pulseira que ela sempre gostou.
Espero que doem minhas coisas, mas guardem o que eu gostava mais, espero que convidem minhas amigas de longe para o enterro e espero também que achem meu diário e os textos salvos no notebook e entreguem para a pessoa que inspirou a maioria deles.
E principalmente, espero que as pessoas que amei continuem me amando, mesmo que se passem anos, e que elas vivam o cotidiano e o inesquecível como se fossem igualmente importantes, porque são.